quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A Igreja Católica Apostólica Americana


Padre Quintino, pároco da Denodada Vila de Itaparica, pessoa grave e circunspecta como convém a seu ofício, anda vestido de padre mesmo. Hoje em dia a gente só vê padre de camisa esporte ou bermuda e, para o sujeito que foi criado no tempo de padre tonsurado e de batina, fica difícil a adaptação. Quan­do aparece um padre desses, a gente tem que apelar forte para a racionalidade e vencer a certeza emocional de que aquele ca­marada com pinta de galã de cinema mexicano não é padre. Chamar de “reverendo”, então, é uma dificuldade: reverendo tem que estar de batina. Mas eu chamo, procuro não ficar ve­lho, adaptar-me aos novos tempos.
Padre Quintino, contudo, é um consolo, porque é padre mesmo, no duro, desses de confiança, que não aparecem sem o colarinho clerical e muito menos de sunguinha na praia do Jardim um reverendo indiscutível. E não se diga que é por­que é padreco do interior, pois ele é cosmopolita. Sim, senhor, só Itaparica para ter dessas coisas: porque padre Quintino é americano, americano legítimo, nascido nos Estados Unidos, com passaporte e tudo. Entretanto, não fala inglês, a não ser um ou outro “how are you?”, assim mesmo com um sotaque italiano carregadíssimo. Sim, porque a língua dele mesmo é italia­no e quem o ouve falando português pensa que está num piquenique no Ibirapuera. Não tem nada de americano, é italia­no mesmo. São coisas da nossa ilha, sempre fomos originais em tudo.
Na verdade, não tenho nem o direito de me meter nes­ses assuntos, porque sou mau católico, um péssimo católico, aliás. Nem sei mesmo se posso ser considerado católico, ainda que péssimo, pois tenho dificuldades em aceitar o magistério da Igreja faço força, mas é difícil. E tampouco vou à missa (padre Quintino, que batizou minha filha Chica e me consi­dera um homem de grande fé eu chorei no batizado, vejam que coisa ridícula sempre me convida, mas eu não vou), co­mungo ou cumpro qualquer das obrigações que me caberiam como católico. Mas, afinal, fui criado como católico, batizado, crismado, comungado e jamais vou poder desvencilhar-me da herança afetiva e cultural que me veio com a formação re­ligiosa católica. Quer eu queira quer não, apesar de meio herege, não posso deixar de me sentir vinculado ao catolicismo.
É por isso que tomo a ousadia de dar penada num as­sunto que me preocupa. É um problema com os americanos. Americano é danado, como sabemos, e, por conseguinte, faz medo o que muitos deles querem da Igreja, ou seja, transfor­má-la numa espécie de clube democrático. Todo dia a gente lê uma novidade no jornal, uma tal crise nas hostes católicas, às vezes porque mulheres querem rezar missa, homossexuais querem casar na igreja, feministas querem que a Igreja apro­ve o aborto, padres querem casar e suas mulheres usar a pílu­la e assim por diante.
Está certo, todo mundo tem o direito de reivindicar o que considera justo, mas o negócio está exagerado. Para começar, religião não é democracia, nunca foi nem pode ser democracia. Deus não foi eleito e quem acredita nele dentro de uma estrutura doutrinária, como a da Igreja e do cristia­nismo em geral, tem de acreditar sem discutir discutir é outra transação. Nem a Igreja cujo Estado-sede é uma monarquia é democrática, nem é assim que funciona. No dia em que os dogmas da Igreja puderem ser alterados como numa convenção do Partido Republicano, elaborando-se uma plataforma “por vontade da maioria”, então não é Igreja: é clube.
Malissimamente comparando, isso me lembra um fe­nômeno causado pelo turismo na Bahia. O camarada queria voltar para sua terra e contar que comeu uma tremenda moqueca de lambreta (marisco que dá muito aqui, cujo nome antigo era cernambi, mas virou lambreta não sei por quê) no mercado Modelo, regada a legítima cachacinha do Recônca­vo. No entanto, quando via a moqueca, achava sua aparên­cia feia e seu conteúdo pesado; quando bebia a cachaça, acha­va-a grosseira e forte demais; quando escutava a barulheira do Mercado, achava que não podia comer sossegado. Então, para essa gente que quer comer moqueca nas não gosta de moqueca, passou-se a fazer “moqueca” sem azeite de dendê e, possivelmente, moqueca de lambreta sem lambreta. As ca­chaças, para quem quer dizer que tomou cachaça, mas não gosta de cachaça, também passaram a ser umas garapas ado­cicadas e horrendas. E assim por diante, numa maluquice di­fícil de conter.
Agora essa turma quer ser católica sem ser católica. Fico imaginando um sujeito que nunca tivesse ouvido falar de re­ligião alguma e resolvesse escolher uma.
E esta aqui? perguntaria ele a seu orientador.
Ah, esta aqui é muito boa, muito tradicional, muito antiga, é uma boa opção.
Ah, é? Então como é que é ela? Dê uma dica aí.
Bem é uma religião organizada em torno da autori­dade hierárquica e doutrinai da Igreja Católica Apostólica Romana, sob o comando do papa, que é infalível em questões de dogma. Não admite o controle da natalidade por qualquer contraconceptivo, seus sacerdotes não casam, suas monjas também não, é contra o aborto, não admite o divórcio, obriga ao comparecimento à missa etc. etc.
Ah, ah, muito bem, eu quero essa. Quero ser católico, achei bonito. Quero até ser sacerdote. Agora, sem essa de não casar, isso não tá com nada. E por que não pode a pílula? O aborto em certos casos tem de ser admitido também. E essa besteira de não poder divórcio? E blá, blá, blá...
Ora, com tantas religiões por aí que podem abrigar to­das ou a maior parte dessas convicções, por que é que ele quer ser católico? Religião não é feita de encomenda, pela ordem do freguês; religião é religião é assim e está acabado. Como é que fica mudando o tempo todo? Se o sujeito quer fazer “cer­tos abortos” e não pecar, procure uma religião que admita esses certos abortos, com a conseqüência de que ele deixa de se sentir pecador. Agora, o que não pode é sair mudando tudo que avacalhação é essa? Padre não pode casar e está aca­bado. Pastor protestante pode. Logo, padre casado não é pa­dre, é uma espécie de pastor protestante, com seu ramo parti­cular e individual de protestantismo. Fico imaginando um judeu “inovador” que insista em servir presunto, bacon e lin­güiça de porco numa festa ortodoxa. Judeu ortodoxo não pode comer carne de porco e está acabado, assim como muçulma­no não pode beber álcool e está acabado, assim como protestante não reza para santos e está acabado. Protestante que quer venerar santos e ter imagens em casa é mais católico do que protestante e por aí vai.
Mas eu tenho medo deles, eles são danados mesmo e não acho impossível que, daqui a pouco, estejam propondo e conseguindo realizar o impeachment do papa. Só o sujei­to se benzendo. Acho até que hoje eu vou dar um susto em padre Quintino e aparecer lá na missa enquanto ainda tem missa.

(31-03-85)

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