Padre
Quintino, pároco
da Denodada Vila de Itaparica, pessoa grave e circunspecta como convém a seu ofício, anda vestido de padre mesmo.
Hoje em dia a gente só vê padre de camisa esporte ou bermuda e, para o sujeito que foi
criado no tempo de padre tonsurado e de batina, fica difícil a adaptação. Quando aparece um padre desses, a
gente tem que apelar forte para a racionalidade e vencer a certeza emocional de
que aquele camarada com pinta de galã de cinema mexicano não é padre. Chamar de “reverendo”, então, é uma dificuldade: reverendo tem que
estar de batina. Mas eu chamo, procuro não ficar velho, adaptar-me aos novos
tempos.
Padre
Quintino, contudo, é um consolo, porque é padre mesmo, no duro, desses de
confiança,
que não
aparecem sem o colarinho clerical e muito menos de sunguinha na praia do Jardim
— um
reverendo indiscutível. E não se diga que é porque é padreco do interior, pois ele é cosmopolita. Sim, senhor, só Itaparica para ter dessas coisas:
porque padre Quintino é americano, americano legítimo, nascido nos Estados Unidos, com
passaporte e tudo. Entretanto, não fala inglês, a não ser um ou outro “how are you?”, assim
mesmo com um sotaque italiano carregadíssimo. Sim, porque a língua dele mesmo é italiano e quem o ouve falando
português
pensa que está num
piquenique no Ibirapuera. Não tem nada de americano, é italiano mesmo. São coisas da nossa ilha, sempre fomos
originais em tudo.
Na
verdade, não
tenho nem o direito de me meter nesses assuntos, porque sou mau católico, um péssimo católico, aliás. Nem sei mesmo se posso ser
considerado católico, ainda que péssimo, pois tenho dificuldades em
aceitar o magistério da Igreja — faço força, mas é difícil. E tampouco vou à missa (padre Quintino, que batizou
minha filha Chica e me considera um homem de grande fé — eu chorei no batizado, vejam que
coisa ridícula
—
sempre me convida, mas eu não vou), comungo ou cumpro qualquer das obrigações que me caberiam como católico. Mas, afinal, fui criado como
católico,
batizado, crismado, comungado e jamais vou poder desvencilhar-me da herança afetiva e cultural que me veio com
a formação
religiosa católica.
Quer eu queira quer não, apesar de meio herege, não posso deixar de me sentir vinculado
ao catolicismo.
É por isso que tomo a ousadia de dar penada num assunto que
me preocupa. É um
problema com os americanos. Americano é danado, como sabemos, e, por
conseguinte, faz medo o que muitos deles querem da Igreja, ou seja, transformá-la numa espécie de clube democrático. Todo dia a gente lê
uma novidade no jornal,
uma tal crise nas hostes católicas, às vezes porque mulheres querem rezar
missa, homossexuais querem casar na igreja, feministas querem que a Igreja aprove
o aborto, padres querem casar e suas mulheres usar a pílula e assim por diante.
Está certo, todo mundo tem o direito de
reivindicar o que considera justo, mas o negócio está exagerado. Para começar, religião não é democracia, nunca foi nem pode ser
democracia. Deus não foi eleito e quem acredita nele dentro de uma estrutura
doutrinária,
como a da Igreja e do cristianismo em geral, tem de acreditar sem discutir — discutir é
outra transação. Nem a Igreja — cujo Estado-sede é uma monarquia — é democrática, nem é assim que funciona. No dia em que os
dogmas da Igreja puderem ser alterados como numa convenção do Partido Republicano,
elaborando-se uma plataforma “por vontade da maioria”, então não é Igreja: é
clube.
Malissimamente
comparando, isso me lembra um fenômeno causado pelo turismo na Bahia. O
camarada queria voltar para sua terra e contar que comeu uma tremenda moqueca
de lambreta (marisco que dá muito aqui, cujo nome antigo era cernambi, mas virou
lambreta não
sei por quê) no
mercado Modelo, regada a legítima cachacinha do Recôncavo. No entanto, quando via a
moqueca, achava sua aparência feia e seu conteúdo pesado; quando bebia a cachaça, achava-a grosseira e forte
demais; quando escutava a barulheira do Mercado, achava que não podia comer sossegado. Então, para essa gente que quer comer
moqueca nas não
gosta de moqueca, passou-se a fazer “moqueca” sem azeite de dendê e, possivelmente, moqueca de
lambreta sem lambreta. As cachaças, para quem quer dizer que tomou
cachaça,
mas não
gosta de cachaça,
também
passaram a ser umas garapas adocicadas e horrendas. E assim por diante, numa
maluquice difícil
de conter.
Agora
essa turma quer ser católica sem ser católica. Fico imaginando um sujeito que
nunca tivesse ouvido falar de religião alguma e resolvesse escolher uma.
— E esta aqui? — perguntaria ele a seu orientador.
— Ah, esta aqui é muito boa, muito tradicional, muito
antiga, é uma
boa opção.
— Ah, é? Então como é que é ela? Dê uma dica aí.
— Bem é uma religião organizada em torno da autoridade hierárquica e doutrinai da Igreja Católica Apostólica Romana, sob o comando do papa,
que é
infalível
em questões
de dogma. Não
admite o controle da natalidade por qualquer contraconceptivo, seus sacerdotes
não
casam, suas monjas também não, é contra o aborto, não admite o divórcio, obriga ao comparecimento à missa etc. etc.
— Ah, ah, muito bem, eu quero essa. Quero ser católico, achei bonito. Quero até ser sacerdote. Agora, sem essa de não casar, isso não tá com nada. E por que não pode a pílula? O aborto em certos casos tem de
ser admitido também. E essa besteira de não poder divórcio? E blá, blá, blá...
Ora, com
tantas religiões
por aí que
podem abrigar todas ou a maior parte dessas convicções, por que é que ele quer ser católico? Religião não é feita de encomenda, pela ordem do
freguês;
religião é religião — é assim e está acabado. Como é que fica mudando o tempo todo? Se o
sujeito quer fazer “certos abortos” e não pecar, procure uma religião que admita esses certos abortos,
com a conseqüência
de que ele deixa de se sentir pecador. Agora, o que não pode é sair mudando tudo — que avacalhação é essa? Padre não pode casar e está acabado. Pastor protestante pode.
Logo, padre casado não é padre, é uma espécie de pastor protestante, com seu
ramo particular e individual de protestantismo. Fico imaginando um judeu “inovador”
que insista em servir presunto, bacon e lingüiça de porco numa festa ortodoxa. Judeu
ortodoxo não
pode comer carne de porco e está acabado, assim como muçulmano não pode beber álcool e está acabado, assim como protestante não reza para santos e está acabado. Protestante que quer
venerar santos e ter imagens em casa é mais católico do que protestante — e por aí vai.
Mas eu
tenho medo deles, eles são danados mesmo e não acho impossível que, daqui a pouco, estejam
propondo — e
conseguindo —
realizar o impeachment do papa. Só o sujeito se benzendo. Acho até que hoje eu vou dar um susto em
padre Quintino e aparecer lá na missa — enquanto ainda tem missa.
(31-03-85)
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